quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Um tempo de Gentileza!





Dando continuidade à série de apresentações e esclarecimentos acerca dos carnavais que a Grande Rio apresentou, e, com o intuito de valorizar o papel artístico e cultural que a agremiação exerce – papel este nem sempre divulgado ou valorizado pela própria - debruço-me a recontar um interessantíssimo enredo construído a partir de um rico “material humano.” Na verdade, um enredo por trás de um enredo.

Corria o ano 2000, e o enredo que a Escola trabalhava para apresentar em 2001 chamava-se Gentileza X, o Profeta do Fogo, onde contávamos a história do empresário José Datrino, homem que a partir de um choque emocional motivado por um incêndio, passou a percorrer o mundo pregando mensagens de amor e paz, tornando-se popular junto ao titulo de Profeta Gentileza.
Para entender o universo poético de construção desse carnaval, primeiramente devemos entender o universo do personagem que norteia essa viagem. José Datrino era um empresário, dono de uma transportadora de cargas no Rio de Janeiro, que se viu sacudido por um acontecimento de grande forca trágica: A queima de um grande circo em Niterói e que ocasionará a morte de 500 pessoas. Após seis dias, ele recebe um chamado "divino" para que deixe tudo que possui e venha viver uma missão na Terra. A partir de sua “revelação” o profeta deixa tudo para sua família e ganha uma nova identidade: GENTILEZA. Sua atribuição: “vir como São José, representar Jesus de Nazaré na Terra.”
Para olhos comuns, um louco. Foi internado três vezes antes de ganhar totalmente as ruas. Com a palavra na boca e seu estandarte em punho, passa a se apresentar na paisagem urbana do Rio de Janeiro como um representante de Deus e anunciador de um novo tempo. Aos poucos torna-se personagem popular. Cria provérbios para alcançar as pessoas e ensinar a gentileza. Ganha as manchetes de alguns jornais que o chamam de “profeta tropicalista” e “chacrinha das calçadas” pela indumentária que adota. Leva sua mensagem de amor e paz por todo o Brasil, mas é no Rio de Janeiro que sua figura torna-se extremamente popular.

O profeta era visto nas proximidades das Barcas, na Praça XV; nos engarrafamentos da Avenida Presidente Vargas, e nas imediações da rodoviária Novo Rio, onde deixa um marco de intervenção na paisagem urbana da cidade que até hoje é a marca mais viva de sua passagem pela cidade do Rio de Janeiro.
Entre a Rodoviária e o cemitério do Caju, numa extensão de 1,5 km, Gentileza realiza seus 56 escritos/murais sobre as pilastras que sustentam o viaduto do Gasômetro. Sua obra demarca um espaço e uma permanência. Ali estão escritos seus ensinamentos, sua denúncia as condições do mundo e a ameaça que incide sobre o homem. A obra é uma cartilha com os preceitos básicos de Gentileza ‘a população. Um livro urbano, onde cada pilastra é uma pagina que faz referencia a humanização da vida na cidade onde a presença da violência e das relações cada vez mais distantes da cordialidade, coloca o meio urbano como um mundo a se reconstruir.
A conclusão dos trabalhos de inscrições nas pilastras termina nos anos 90, assim como, sua saúde dá os primeiros sinais de fraqueza motivada pela vida de privações que o profeta se submeteu. Acometido por problemas circulatórios e pela dificuldade no caminhar, o profeta vem a falecer no dia 29 de maio de 1996, aos 79 anos.
Assim, mergulhando na poesia e no material místico que a idéia possibilitava, o carnavalesco Joãozinho trinta enxerga a possibilidade plástica de um enredo que inaugura sua história com a Grande Rio e apresenta aos dirigentes da Agremiação: “Houve um homem enviado ao Rio de Janeiro por Deus. Seu nome era José Datrino, chamado de Profeta Gentileza (1917-1996). Por mais de vinte anos circulou pela cidade com sua bata branca cheia de apliques e com seu estandarte, pregava nas praças e colocava-se nas barcas entre Rio e Niterói anunciando sem cansar: Gentileza gera Gentileza”.




Na verdade, um animo de devaneio artístico, de possibilidade criativa que a Escola de Caxias podia, e deveria experimentar. Um enredo de poética extravagante, que contava a história de um ex-empresário, um homem simples, que se tornou personagem popular no Rio de Janeiro a partir de 1961 ao abandonar um mundo de dinheiro, para pregar a gentileza pelas ruas do Rio.
Como todo profeta, Gentileza denuncia e anuncia. Denuncia este mundo, regido “pelo capeta capital que vende tudo e destrói tudo”. Vê no circo destruído uma metáfora do circo mundo que também será destruído. Mas anuncia a “gentileza que é o remédio para todos os males”. Deus é “Gentileza porque é Beleza, Perfeição, Bondade, Riqueza, a Natureza, nosso Pai Criador”. Um refrão sempre volta, especialmente nas 56 pilastras com inscrições na entrada da rodoviária Novo Rio no Caju: “Gentileza gera gentileza, amor”. Convida a todos a serem gentis e agradecidos. Na verdade, anuncia um antídoto à brutalidade de nosso sistema de relações.




Prato perfeito para o carnavalesco que pretendia anunciar a chegada da era de Aquárius, o alvorecer do novo milênio, e via na humanidade “sem gentileza” do milênio que findava, a “Roma pagã" que foi destruída. No enredo, Joãozinho exalta a grandeza do desprendimento do profeta vendo-o em proximidade a São Francisco colocando-o então como Irmão Sol e irmão Lua. No Carnaval que o artista cria, o circo e o fogo são símbolos da justiça e da transformação do mundo. Na poesia de João, o profeta é alguém que sofre ao ver a repetição da Idade Media ou Idade das trevas. Para João, tal como no período medieval, repetia-se no mundo contemporâneo a tristeza do passado...Estavam lançadas as bases poéticas e definitivas do nosso carnaval.

Na sinopse lia-se: “O alvorecer do III Milênio, em plena Era Espacial, é o exato momento do homem contemplar as mensagens de seres iluminados. Em Niterói, aconteceu a tragédia de um circo destruído pelo fogo. Dizem, entidades espíritas, foi o resgate de vidas passadas em Roma pagã. Abalado com esta notícia, um empresário chamado Jose Datrino ouviu vozes chamando-o para uma missão espiritual. Ele era um homem atribulado por todos os problemas atuais. Como todos nós, ele estava vivenciando a Idade Media dos nossos dias. Vendo o povo sofrendo, despojou-se de suas riquezas e começou sua peregrinação. Foi chamado de louco e poeta. Plantou flores e distribuiu vinho no local daquele sofrimento. Imortalizou nas pilastras do viaduto uma sabedoria universal. Começou sua pregação dizendo: “GENTILEZA GERA PERFEIÇÃO, BONDADE A NATUREZA. AMOR, BELEZA E RIQUEZA.” E com a vibração da Era de Aquários a Grande Rio pede a benção ao profeta Gentileza com afeto, carinho e emoção. Agradecido meu irmão. Ass: Joãosinho trinta.



Para o desfile a escola apresenta um excelente samba de autoria dos compositores Carlos Santos, Ciro, Claudio Russo e Zé Luiz, interpretado pelo cantor Quinho, que na época dava expediente na agremiação de Caxias. Os versos do meio eram valentes: “Deixa clarear...(deixa clarear!)/ Idade média nunca mais...(nunca mais!)/ Gentileza anuncia / No raiar de um novo dia / Um clamor de amor e paz.” O destino do profeta era contado: “ Pelas vozes foi guiado / O arauto iluminado / A mudar o seu destino / Renuncia a ambição / Ao seguir a intuição José Datrino”/... “Considerado louco / O poeta foi bem mais / Deixando nas pilastras / As palavras imortais / Com a sabedoria universal / Pregava contra o mundo desigual / Gentileza gera perfeição / Violência não!”
O samba emplacou na quadra, e na avenida, um coro forte foi entoado pela comunidade de Caxias. Na plástica, a estrela de João parecia estar mais estravagante. A estética era pesada, o colorido era exagerado e as ousadias se faziam presente a cada novo momento. Nosso carnaval estava mergulhado naquele universo inscrito de vermelho, branco, azul, verde e amarelo. Um carnaval vertical, tal quais as pilastras que o profeta cobriu com sua sabedoria. Um carnaval que era vermelho, tal quais os sentimentos brutos que o profeta combatia. Um carnaval que era branco, tal qual o sentimento que o profeta pretendia expandir. Da distribuição de flores como prova de gentileza, passando por alas com componentes a encenar brigas, chegando aos efeitos especiais nos carros alegóricos falando de paz e novo milênio, a escola causava forte impacto aos que assistiam o desfile que se iniciou junto a manha saudada pelos versos de “deixa clarear...deixa clarear!”
Só quem viu pode falar da magia de nossa apresentação. Só quem viu pode explicar a extravagância daquele carnaval. Extravagância em tudo. Em componentes, em tamanho, em fantasias, em cores...Extravagância de uma mente que vislumbrou um homem voando na abertura de um carnaval! O tal carnaval nas estrelas que a Mocidade sonhou em seu Ziriguidum 2001, chegará realmente em 2001, mas quem dava a partida, era a Grande Rio.



O astronauta Eric Scott abriu a apresentação da escola cruzando o céu! O desfile da Grande Rio decolou. Munido de um jato movido a peróxido de hidrogênio, ele espantou o público ao sobrevoar a Marquês de Sapucaí, abrindo a apresentação da escola: era o segredo guardado a sete chaves pela agremiação que naquele ano refletia a extravagância do carnavalesco. Um vôo histórico que incluiu a apresentação da agremiação na memória definitiva do carnaval carioca.
Um amanhecer inesquecível para os presentes! O homem voará para o publico levantando uma cortina de papel cintilante pelos ares. Uma festa colorida de prata onde o sorriso do folião e os gritos da arquibancada motivavam as lágrimas dos que daquilo tomavam parte. A escola abriu o desfile com um pede passagem que desfilou entre a comissão de frente e o carro abre-alas, que representava a era espacial e apresentava o terceiro milênio. A comissão de frente, que representava o fogo e o alvorecer do novo milênio, teve grande comunicação com o público da Sapucaí sendo saudada a cada novo setor. Depois, veio o abre-alas, todo acabado em prata e que possuía uma grua levando a Globeleza Valéria Valença até bem próximo ao público das arquibancadas.
A tragédia do circo de Niterói foi representada no carro “O Circo da Roma Pagã” tendo como estrelas a ex-jogadora Hortência, o ator André Segatti e o ator Miguel Falabella, que desfilou no chão, a frente da alegoria caracterizado como o imperador César, garantindo aplausos dos setores populares. Uma história universal de gentileza que passeava pelo histórico das cruzadas, pelo poder clerical acima do povo, e pelo poder romano que a tudo subjugava.
A escola parecia ter feito aquele carnaval para o povo! O homem voou para o delirio povo, a comissão de frente conquistou a atenção do povo, a “Globeleza” era oferecida ao povo, os artistas saudavam o povo, e foi o povo quem nos consagrou! A perda de decimos provocada por problemas tecnicos em nada ofuscou nosso carnaval e o sexto lugar nao apagou a exuberancia e magnitude daquele desfile. O esforço dos integrantes da escola em oferecer uma apresentação ao povo surtiu efeito. A pesquisa do Ibope, feita com o público da Sapucaí, deu a Grande Rio nota 9,5, a maior nota da segunda noite de desfiles e mostrava que o que a Grande Rio anunciava tornava-se pertinente.
Em 2001 a Grande Rio assumia a sabedoria universal do profeta que homenageava, fechava o primeiro carnaval do novo milênio e anunciava, no amanhecer de um Fevereiro passado, uma mensagem de amor e paz que esteve na boca do profeta Gentileza, está - ainda hoje- nas pilastras do viaduto do gasômetro, e que naquele carnaval, esteve na boca de quatro mil e quinhentos componentes vestidos de cor e exuberância, e que fizeram mais uma vez, as palavras sábias de um velho andarilho moderno, ecoarem sobre o centro urbano da cidade do Rio de Janeiro.

Um comentário:

  1. Que lindo post, Squel! bela homenagem ao nosso carnaval 2001.. eu costumo dizer que foi a partir desse carnaval que a Grande Rio mostrou que não era de brincadeira.

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