quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Para lembrar Ismael!

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A postagem de hoje inaugura uma nova “corrente” para o blog. Sempre que possível, estarei deixando aqui uma pequena biografia de nomes que merecem que sua história particular seja lembrada. Serão as memórias de compositores, intérpretes, homens e mulheres do povo, gente que merece reconhecimento pelo pioneirismo, talento e por levar adianta a tradição do samba, reinventando assim nosso carnaval. A que inaugura vem deixar gravado aqui o nome de Ismael Silva. Sambista, malandro e homem de visão que marca a história como o idealizador da primeira Escola de Samba. À ele, meu reconhecimento que aqui chega nesta singela lembrança que traz a tona seus feitos em defesa do ritmo que ele ajudou a consolidar. Salve Ismael!
Ismael Silva - a tradução da malandragem carioca.

Ismael da Silva nasceu em Niterói RJ em 14 de Setembro de 1905. Filho de um operário e de uma lavadeira, aos três anos mudou-se com a família da praia de Jurujuba (Niterói), para o bairro do Estácio e mais tarde para vários outros bairros do Rio de Janeiro. Freqüentou escola primaria no Rio Comprido e aos 15 anos compôs Já desisti, seu primeiro samba, que ficaria inédito. Dois anos depois, de volta ao Estácio, passou a freqüentar o Bar e Café Apolo e outros pontos de encontro de alguns dos grandes sambistas da época, como Mano Edgar, Baiaco, Nilton Bastos, Brancura, Bide e seu irmão Rubem Barcelos. Logo se tornou conhecido nessas rodas, e em 1925 a melodia de seu samba Me faz carinhos era gravada pelo pianista Cebola, em disco da Casa Edison. Dois anos mais tarde, doente e internado em hospital da Gamboa, foi procurado por Bide, que lhe trazia uma proposta de Francisco Alves: o cantor, na época já famoso, queria comprar um samba seu. Aceitou, e Me faz carinhos foi lançado em disco Odeon, trazendo no selo o nome de Francisco Alves como intérprete e autor.
Logo depois o samba Amor de malandro era lançado nas mesmas condições, e o êxito alcançado pelos dois discos levou o intérprete a propor-lhe exclusividade na gravação de toda a produção do sambista. Este aceitou o arranjo (mais tarde desfeito) com a condição de que fosse também incluído seu parceiro Nilton Bastos. Assim, vários sambas como Não há, Nem é bom falar e o grande êxito Se você jurar, lançado em 1931 pela dupla Francisco Alves - Mário Reis, tornaram-se conhecidos pelo publico dos discos e do Rádio, tendo participado do coro na maioria dessas gravações. Em 1928, com os principais sambistas do Estácio, reuniu integrantes dos blocos de sujos existentes no bairro, e fundou a Deixa Falar, a primeira escola de samba do Rio de Janeiro.
Entre seus vícios: o violão e as mulheres.

Segundo ele próprio, seria de sua autoria a expressão "escola de samba", por analogia com a Escola Normal existente no Estácio, bairro de onde saíram os "professores" de samba. Fundada a 12 de agosto de 1928, desfilou pela primeira vez no ano seguinte, cantando na Praça Onze os sambas do pessoal do Estácio, com ele do lado de fora da corda, vestindo seu tradicional terno de linho branco. Nessa época, como o samba carioca guardava ainda semelhanças com o maxixe, esse grupo de sambistas – segundo afirmação dele – foi o responsável pela criação e fixação de um novo tipo de samba, cuja batida marcada por instrumentos de percussão era mais apropriada para os desfiles das escolas que surgiam.
Em fins de 1931, Nilton Bastos morreu de tuberculose e Mano Edgar foi assassinado numa briga de roda de jogo. Deixou então o Estácio e foi morar na cidade, datando desse ano suas primeiras composições com Noel Rosa, novo parceiro que conheceu através de Francisco Alves. O primeiro samba da dupla, Para me livrar do mal, foi feito ainda em 1931 e gravado no ano seguinte por Francisco Alves. Comporiam juntos diversos sucessos, entre os quais Adeus (com Francisco Alves como co-autor), dedicado a Nilton Bastos e lançado em 1932 pela dupla Jonjoca-Castro Barbosa; Uma jura que eu fiz (também com Francisco Alves), por Mário Reis em 1932; Ando cismado, por Francisco Alves em 1933; e A razão dá-se a quem tem (com Francisco Alves), grande êxito de Francisco Alves e Mário Reis em 1933. Em dupla com Noel Rosa o sambista estreou como intérprete em 1932, gravando na Odeon o samba Escola de malandro (Orlando Luís Machado). No ano seguinte lançaram, no mesmo disco, os sambas Quem não dança e Seu Jacinto (ambos de Noel Rosa). Suas composições começaram a ser gravadas por vários interpretes, entre os quais João Petra de Barros, Silvio Caldas e Carmen Miranda. Em 1937, morreu seu parceiro Noel Rosa. Esquecido durante a década de 1940, reapareceu em 1950, quando Alcides Gerardi lançou Antonico, samba de versos tristes e andamento lento, um dos mais belos de sua obra.

Junto com a sambista Aracy de Almeida em 1965.

O ano de 1954 marca um período de revalorização de antigos nomes da música popular: por promoção do cantor e radialista Almirante, realizou- se em São Paulo o Primeiro Festival da Velha Guarda, reunindo grandes nomes da música popular, entre eles o seu; na boate Casablanca, no Rio de Janeiro, estreia em 1955 o show O samba nasce no coração, onde atuou ao lado de artistas de grande popularidade nas décadas anteriores. Logo depois gravou os dois primeiros LPs como interprete de suas músicas: O samba na voz do sambista, lançado pela Sinter, e Ismael canta Ismael, pela Mocambo, ambos em 1956. Em 1964, depois de outro período de esquecimento, reaparece no Restaurante Zicartola, na Rua da Carioca, com grande sucesso. No ano seguinte atuou no Teatro Opinião, com Araci de Almeida, no musical O samba pede passagem, do qual foi feito um LP lançado pela Philips. Homenageado na Bienal do Samba, em São Paulo SP, e em programas de televisão e Rádio, voltou ao palco em 1973 no espetáculo Se você jurar, escrito por Ricardo Cravo Albin e estreado no Teatro Paiol, a convite da prefeitura de Curitiba PR. Em junho do mesmo ano gravou na RCA o LP Se você jurar, com grandes sucessos do passado e seis sambas inéditos: Contrastes, Alegria, Alias, Receio, Entrada franca e Afina a viola. Morreu no Rio de Janeiro RJ em 14 de Março de 1978 deixando um legado para a história do samba que foi revisto pelo próprio em um de seus ultimos depoimentos. Abaixo, reproduzo trechos das memórias de Ismael acerca de acontecimentos pertinentes a história do samba e de sua vida particular que nos ajuda a trazer até os dias atuais um pouco desse universo particular que ilustra de maneira sublime a criação das Escolas de samba, a malandragem do Rio de Janeiro nos anos trinta, o cenário da Música popular brasileira em fase pioneira e as questões da conciência negra. Boa leitura!


Ismael por Ismael:"...Eu nasci em 1905, em Jurujuba, Niterói. Aos três anos vim para o Estácio, com minha mãe. O Estácio fazia parte da Pequena África Carioca, que se estendia da Saúde, Gamboa à Praça Onze, da Praça Onze ao Estácio, Catumbi. Era um reduto de costumes africanos trazidos da Bahia, quando nós imigramos para cá. Convivi com essa cultura. Cultivei e fui cultivado por ela. Sou sambista. Um dos bambas do Estácio..."

Negritude:"...Sou negro e como negro devo achar meu caminho na vida. A libertação muito recente não modificou em nada nossa situação. Somos postos de lado nas escolas, nos serviços. A identidade que nos envolve é penosa e devemos lutar para preservá-la...Então, os negros se empregavam no cais do porto. Toda aquela zona era o nosso domínio. Não, o trabalho não nos integrou à sociedade, não. O contato acabou por se fazer naturalmente; embora marginalizados, participávamos da vida social – minha mãe mesmo lavava roupa para o Flamengo, as Laranjeiras e acho que São Cristóvão. Estávamos nas ruas, não é? O trabalho não nos dá nada, nem dinheiro, nem reconhecimento social. Havia era a precisão de ganhar a vida, o sustento, e isso fez com que buscássemos alternativas. O cais dava emprego, mas não para todos. A música poderia ser uma saída. Nós fazíamos música e havia o mercado fonográfico... os discos... e uma necessidade de furar o bloqueio social. O negro é muito mal visto. Branco é quem compra disco..."


Aula de samba:"...Dizem que o primeiro samba é Pelo Telefone – não é; esse é maxixe. No morro, samba é batucada. O samba mesmo nasce de uma necessidade rítmica que nos permite cantar, dançar e desfilar ao mesmo tempo. O samba tem uma história interessante e longa – vem da Bahia. Os nossos ascendentes são negros que sofreram a escravidão, que trabalharam..."

Inventando Escola:"...Bem, fundei, no Estácio, com os bambas de lá, a primeira escola de samba, a Deixa Falar. Era costume, no carnaval carioca, a disputa, que sempre degenerava em briga. A polícia batia, nós revidávamos – não era bom para ninguém, não é? A Deixa Falar nasceu do desejo de não apanhar da polícia. Alguns dizem que o samba se modifica, se adapta ao mundo social por isso. E podia ser diferente? Samba não é folclore, tem de se modificar. É a parte viva da nação. O sambista interage, anda nas brechas do permitido e vai se afirmando, se aprimorando...
Uma das mudanças que aconteceu ao longo dos anos, que faz parte mesmo das mudanças sociais do país, foi a maior participação popular. Isso pode ilustrar a importância do que fizemos, eu, Edgarzinho, Nilton Bastos, Bide e Marçal. Foi através das escolas de samba que a preocupação política se estendeu a uma faixa maior de cidadãos, que nós pudemos soltar a nossa voz e criar algum respeito..."
"...A escola de samba foi um ato programático que serviria de impulso social à integração negra. A partir da fundação da Deixa Falar, o malandro pôde brincar seu carnaval, sem ser incomodado, como os brancos, entende?..."

Deixa Falar:"...Nasceu a Deixa Falar que tinha como organização e exigência a presença de diversos elementos que se perpetuam até hoje. As baianas, exigência minha, o mestre-sala, o porta-bandeira e destaques. Não havia enredo no princípio – no primeiro ano em que a Escola desceu – saída do Buraco Quente, na Mangueira, não havia nenhuma determinação temática e para não dispersar e manter tudo certo, arrumadinho, tivemos que criar o ritmo. O segundo desfile já foi feito com enredo, era uma versão nossa da Divina Comédia, com baiana e tudo!..."
"...Deixa Falar, porque éramos atacados. Como fizemos modificações no modo de desfilar, para a segurança do grupo, os tradicionalistas disseram-nos não. Vinham saber, reclamar. Instigar. Deixávamos que falassem, por um lado. Por outro, as mudanças promovidas ao longo dos tempos trouxe uma dinâmica de desfile, onde liberdade e salvo-conduto para brincar o carnaval, sem apanhar, resultou numa maior socialização das camadas populares. A coisa é bem bolada. Tivemos reações contrárias de um e outro lado..."

Malandragem:"...A malandragem foi e é uma forma de sobrevivência, necessária. Aprendemos a defender, desde a escravidão, o nosso corpo que é o que possuímos. Isso ficou, na fama de valentia, nas danças dos pagodes dos morros. A navalha no bolso. O corpo do malandro é intocável..."
"....Malandro que é malandro não desperdiça tapa. Eu não desperdicei o que precisei dar. Mexeram com minha irmã e tirei satisfação. Noel havia me dito que no século do progresso o revólver apareceu para acabar com a valentia. O tiro não matou o sujeito, acertei sua bunda. Fui condenado a cinco anos de reclusão, pena mínima. O Dr. Prudente de Morais, neto, defendeu-me. Cumpri metade, por bom comportamento..."

Cadeira cativa: "...A escola de samba foi feita para a diversão dessas pessoas, não é? Pois, então, como nós podemos pagar os ingressos? O samba, desde que passou para a jurisdição da administração, foi perdendo essa participação popular de irmos ver o desfile e torcermos para a nossa agremiação. Eu mesmo não posso ir à avenida ver o desfile...
Todo carnaval vocês me entrevistam, falam comigo. Criticam as autoridades por não me darem um lugar de honra para ver o desfile. Acho justo, claro. Sugere daqui, insiste dali, um prefeito desses de vocês resolveu criar uma lei dando direito a duas cadeiras cativas para eu assistir o desfile. Precisava disso? Eu? Eu não pedi nada. No mesmo ano, em 1976, vieram buscar-me com o carro da Assembléia. Cheguei à avenida. Quando procurei o lugar, as minhas entradas eram para as arquibancadas.
Eu acho que tem que ser cumprida a lei. O que me deixa triste é as pessoas ainda pensarem que você é bobo. Só elas são inteligentes. Protesto, sim. Lugar nobre é nas cadeiras cativas. E no samba quem é mais nobre do que eu?

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