terça-feira, 6 de outubro de 2009

Coisa de mulher!


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Quando a idéia de criar este espaço me veio à cabeça, a princípio, quis resgatar as estórias antigas, os fatos pouco relatados e as pessoas relevantes para a história da minha agremiação – muitas vezes encobertos por uma cortina comercial que esconde a beleza humana dos personagens que lhe dão o contorno mais definitivo. No entanto, começaram a surgir outros questionamentos. Em muitos campos da história cultural do universo em que me insiro, o comercialismo e a valorização de elementos alheios a esse contexto escondem a beleza humana que está por de trás da verdadeira história do samba. Confesso que ainda pouco sei. Mas, mergulhar nesse universo para amenizar minha curiosidade em relação a assuntos que pouco conheço, ou não tenho conhecimento algum, têm em muito contribuído para o entendimento de elementos pertinentes. Por isso esse blog! Para dividir com vocês estórias conhecidas por mim, e descobrir, outras que ainda desconheço.
Em função disso, dei inicio a uma pesquisa que há muito me intrigava: Sempre ouvi sobre os homens que construíram a história do samba com seus versos, melodias, pioneirismo,talento e me questionei sobre onde estaria nesse mesmo contexto, a figura da mulher.
De musa inspiradora à personagem ativa, o espírito feminino está presente no samba desde os primórdios. As mulheres têm lugar definitivo na história do carnaval e do samba. Muitas são anônimas, outras, grandes damas. Algumas são talentosas intérpretes, outras, mestras no verso e no improviso. Mulheres exaltadas, cantadas, mulheres do povo, cada uma rainha a sua maneira pela liderança, respeito e dedicação, não sendo exagero afirmar que muitas tornaram-se símbolos autênticos de suas agremiaçoes.
Nesse caminho de descobertas dividirei com vocês as histórias particulares de algumas mulheres que desde o final do século XIX, chegando ao século XXI, são representantes e prestam contribuição decisiva para a evolução e consolidação do samba enquanto gênero musical e sua fixação como tradição cultural. Para tal, dou partida a essa história junto ao final do século XIX onde as "Tias" Baianas tiveram papel decisivo no cenário do surgimento do samba no Rio de Janeiro.
Além de passarem para os seus descendentes a cultura ancestral que elas trouxeram da Bahia, estas mulheres eram sacerdotisas de cultos e ritos da tradição Africana, grandes quituteiras e festeiras eméritas. Com isso, acabaram reunindo em torno de sua figura a comunidade que as cercavam com música e dança nas celebrações por elas realizadas. Nessa época viviam: Tia Amélia (mãe do compositor Donga), Tia Prisciliana (mãe do sambista pioneiro João da Baiana), Tia Veridiana (mãe de Chico da Baiana), Tia Mônica (mãe de figuras do universo negro como Pendengo e Carmem do Xibuca) e mais um número sem fim de “tias” que com a sabedoria feminina se destacavam na preservação das tradições africanas seja no campo religioso seja na recriação de seus festejos “de origem” em terras cariocas. Junto aos nomes citados acima, outros viriam e transformariam a região central da cidade do Rio de Janeiro num caldeirão cultural que emanava as tradições negras por uma região que se estendia da Praça Onze, passava pelo porto e chegava a Pedra do Sal sobre o titulo batizado pelo sambista, compositor e pintor Heitor dos Prazeres como a Pequena África.

As "tias" pioneiras.


Nesse cotexto, uma mulher assumiu notoriedade pelo respeito e credibilidade que impunha sobre aquele universo. O nome de Tia Ciata esta cravado na memória do samba e sua importância é apontada por uma serie de teses, livros e artigos que não economizam elogios a sua relevância enquanto liderança natural. Batizada Hilária Batista de Almeida nasceu em Salvador em 1854 e aos 22 anos veio para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor. Foi a mais famosa das tias baianas e era na comida e nas vestes tradicionais que expressava suas convicções religiosas, sua fé no candomblé e sua posição de “mestra ancestral” da tradição.
Em sua casa - considerada a Capital da Pequena África – que tinha como freqüentadores gente como Pixinguinha, Donga, Heitor dos Prazeres, João da Baiana, Sinhô e Mauro de Almeida, que o samba ganhou abrigo seguro, para dali nascer o primeiro levado ao disco em 1917, inaugurando a consolidação do encontro “para tocar samba” como um gênero musical propriamente dito.
Com o tempo, o samba ganhou escola e em 1935, o termo “escolas de samba” foi legalizado ao passo em que o desfile de rua foi oficializado. Na época não existia nem percurso, nem horário certo, mas era indispensável à passagem desses grupos na Praça Onze, para que as Tias Baianas - consideradas as mães do samba e do carnaval dos pobres - fossem saudades e distribuíssem sua benção demonstrando assim, a importância daquele grupo de mulheres para aquele universo.

Seguindo a linha evolutiva dessas mulheres, esse espírito de liderança espalhou-se por todas as comunidades onde as sementes do samba foram lançadas. Com o tempo, a imagem das “tias” se reformulou para tornar-se popular a figura das “Tias do Samba” como conhecemos na atualidade, sendo essas talvez, a mais definitiva representação da importância e contribuição da mulher nesse universo. Guardiões do espírito das “Ciatas”, rodando como baianas, atuando na organização ativa das agremiações, perfumando as quadras com o perfume de seus quitutes, ou com o reconhecimento e gratidão resguardado na Velha-Guarda, muitas conquistaram prestígios que ultrapassaram as fronteiras de suas comunidades.

Tia Neuma - seguindo a tradição


Baluarte da Estação Primeira de Mangueira e filha de um se seus fundadores, D. Neuma tornou-se Tia para as crianças quando, além das suas 3 filhas de sangue, adotou 27 crianças do morro oferecendo assistência desde a alimentação até a educação. A casa, sempre de portas abertas, retratava o espírito acolhedor de D. Neuma que procurava ajudar à comunidade da melhor forma possível. Referência no morro, a humilde residência era o lugar aonde chegavam as encomendas dos moradores - desde correspondências à material de construção - além do telefone que apesar de não ser o único do local, era o que todos podiam usar.
Nessa constante preocupação com o bem-estar da sua comunidade, essa mulher que enquanto assistia as crianças jogando futebol na rua - e enxergava as conseqüências dessa simples brincadeira através do número de atropelamentos - junto com Agrinaldo de Santana teve a idéia de que fizessem dentro da quadra um espaço para que as crianças pudessem brincar com segurança e, a partir dai, com a existência de um sistema próprio de alfabetização que a mesma havia implantado junto a comunidade, viu seu sonho crescer quando a idéia por ela concebida ganhou forma com a inauguração do CAMP MANGUEIRA. Assim como Tia Ciata, que tem seu nome em uma Escola Municipal na Avenida Presidente Vargas, em abril de 2008, o Estado inaugurou em memória e reconhecimento o Anexo I da Escola de Ensino Fundamental Tia Neuma, na Vila Olímpica da Escola.

Tia Doca - tradição do "pagode" renovada.


Ainda nesse universo de ativa participação na luta e na conquista da preservação da memória e do reconhecimento das classes minoritárias Tia Doca, Pastora da Azul e Branca de Madureira tornou-se uma guerrilheira em prol da tradição do pagode ( entendendo-se pagode como um encontro de sambistas para a prática musical ). Antes de ingressar na Portela, Doca tomou as primeiras lições de samba no Prazer da Serrinha. Aos 14 anos assumiu o posto de porta- bandeira da Escola Unidos do Congonha. Sua estréia pela escola na qual se tornaria mais tarde um de seus ícones, foi em 1953 através de seu marido Altair, filho de Alvarenga, grande compositor portelense. Tia Doca intituláva-se defensora do samba de raiz e em virtude disso seu quintal molhado para não levantar poeira, reunia sambistas consagrados e “curiosos” que mais tarde conheceriam estrelato como Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz. Quando casada, o quintal de sua casa servia de palco para os ensaios da Velha Guarda Show da Portela, com a separação, o que antes era feito para reunir amigos, passou a ser a fonte de renda de Doca no sustento de seus filhos e daí deu-se início a uma das mais tradicionais rodas de samba da Cidade, o Pagode da Tia Doca, que tornou-se uma das mais belas páginas da história do samba na cidade do Rio de Janeiro. Nesse território livre para criação e descobertas, mantido por seus filhos mesmo após o falecimento da pastora, destacava-se outra extraordinária habilidade que reforçava sua tradição ancestral: Excelente cozinheira, em suas rodas de samba Doca demonstrava sua habilidade nos quitutes sendo a sopa de ervilha apontada por Zeca Pagodinho como uma de suas comidas preferidas preparadas pela pastora portelense.


De frente na roda que leva seu nome.


Não há quem possa entender a história das escolas de samba sem passar por um nome de mulher. Muitas transformaram suas histórias particulares na história do próprio samba. São baianas, como foi Tia Vicentina na Portela - que a pedido de seu irmão Natal assumiu o comando da cozinha do Portelão ganhando uma homenagem do compositor Paulinho da Viola que imortalizou "o famoso feijão da Vicentina" ao acrescentar-lhe o titulo de “coisa divina” - ou D. Ivone Lara – a grande dama do samba que entrou para a história como compositora renomada da MPB e primeira mulher a ingressar na Ala de Compositores de uma escola de samba.


D. Ivone Lara - a grande dama do samba.


São Porta-bandeiras como foi Tia Dodô - que aos 15 anos recebeu das mãos de Paulo da Portela o pavilhão da escola e dentro de sua história singular no mundo do samba chegou ao inusitado cargo de madrinha da bateria mesmo quando já passava dos 80 anos – ou Maria Helena; - a grande-porta bandeira da Imperatriz Leopoldinense que com sua garra, determinação e seu jeito “forte” de dançar defendeu as cores de seu pavilhão até o carnaval de 2006 – chegando ao nome de Selminha Sorriso - ícone da escola de Nilópolis, soberana no ofício que exerce, e referência para todas as Portas-bandeiras.


Selminha Sorriso - Talento e graça.


Além do que já disse, as mulheres realizaram uma escalada ascendente na ocupação de setores até então predominantemente masculinos. Hoje, encontram-se presentes em todas as baterias de Rio de Janeiro. Em algumas escolas são diretoras de naipes como tamborim e chocalho, mostrando que não há barreira nem limitação para sua área de atuação. Até a Estação Primeira de Mangueira – que mantinha a proibição por estatuto - inseriu mulheres entre os seus ritmistas quebrando um tabu mitológico em tono da questão da presença feminina em sua bateria. Como pioneira nessa empreitada, Dagmar - esposa de Nozinho, irmão de Natal - a primeira mulher à tocar surdo numa escola de samba.

Ainda faltam alguns setores à serem ocupados por nós mulheres. Ainda não conseguimos com que uma mulher esteja à frente de uma bateria não pela beleza, mas no posto de Mestre de Bateria. Ainda falta uma Diretora de Carnaval, ou, uma Diretora de Harmonia que tenha o mesmo reconhecimento dos homens que exercem estas funções. Hoje, mesmo que tenhamos importância reconhecida e algumas já tenham deixado a marca feminina na direção de agremiações como Dona Neide - que foi Presidente do Império Serrano - Chininha - filha mais velha de D. Neuma - que até o carnaval de 2009 foi Presidente da Mangueira e Regina Duran - atual Presidente do Salgueiro – o papel da mulher para o samba, sua contribuição e presença, ainda terá de ser estudado e revista para que seus nomes não caiam no esquecimento!

Abaixo, algumas das muitas que emprestaram ou emprestam sua graça, força e beleza ao samba! De todas as idades, cores e nomes. De tempos distintos. Próximas ou distantes! Salve sua beleza! Salve seus nomes!




Carmem Miranda



Tia Surica


Beth Carvalho


Tia Dôdô


Clara Nunes

Maria Helena



Bibliografia: Site academia do samba; site wikipédia, Acervo CAMP da Mangueira, jornal extra on line; livro batuque na cozinha de Alexandre Medeiros, site gres portela, site da liesa

6 comentários:

  1. Belo texto!
    Aguardo os proximos

    Parabéns pelo blog e sucesso!

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  2. Euuuuuuuuu amei muito esse post, caraca quanta coisa qe eu nem imaginava saber está td escrito ai .. qe Lindo, Squel qe lindo msm cada dia qe passa, eu só descubro mais e mais !Estou louca e curiosa pra vê os próximos que com ctz vão ser maravilhosos qe nem esses anteriores;
    Beijos Grandes minha Linda !

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  3. Que lindo!
    Mulheres que influenciaram e continuam contribuindo p/ o sucesso do nosso samba!

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Minha Rainha Poderosa, só hoje pude parar com mais calma e ver seu blog. E sinceramente, amei! Amei o texto e toda carga histórica e reverência feita para aqueles que nos deixaram o samba como legado e que cabe a nós deixar para os que virão. Parabéns pela iniciativa, parabéns pelo blog. Milhões de beijos.

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  6. JÁ ERA SUA FÃ NÉ... DEPOIS DE VER SEU BLOG SOU MUITO MAIS... PARABÉNS PELA INICIATIVA, MULHER DE SABEDORIA É VC!!! ESPECIAL!!!
    QUE O CARNAVAL DE 2010 SEJA MAIS DO QUE ESPECIAL E QUE VC BRILHE COMO SEMPRE QUERIDA!!!!

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