
A presença de minha mãe, desde o início.
A presença de minha mãe, desde o início.
O ano de 1954 marca um período de revalorização de antigos nomes da música popular: por promoção do cantor e radialista Almirante, realizou- se em São Paulo o Primeiro Festival da Velha Guarda, reunindo grandes nomes da música popular, entre eles o seu; na boate Casablanca, no Rio de Janeiro, estreia em 1955 o show O samba nasce no coração, onde atuou ao lado de artistas de grande popularidade nas décadas anteriores. Logo depois gravou os dois primeiros LPs como interprete de suas músicas: O samba na voz do sambista, lançado pela Sinter, e Ismael canta Ismael, pela Mocambo, ambos em 1956. Em 1964, depois de outro período de esquecimento, reaparece no Restaurante Zicartola, na Rua da Carioca, com grande sucesso. No ano seguinte atuou no Teatro Opinião, com Araci de Almeida, no musical O samba pede passagem, do qual foi feito um LP lançado pela Philips. Homenageado na Bienal do Samba, em São Paulo SP, e em programas de televisão e Rádio, voltou ao palco em 1973 no espetáculo Se você jurar, escrito por Ricardo Cravo Albin e estreado no Teatro Paiol, a convite da prefeitura de Curitiba PR. Em junho do mesmo ano gravou na RCA o LP Se você jurar, com grandes sucessos do passado e seis sambas inéditos: Contrastes, Alegria, Alias, Receio, Entrada franca e Afina a viola. Morreu no Rio de Janeiro RJ em 14 de Março de 1978 deixando um legado para a história do samba que foi revisto pelo próprio em um de seus ultimos depoimentos. Abaixo, reproduzo trechos das memórias de Ismael acerca de acontecimentos pertinentes a história do samba e de sua vida particular que nos ajuda a trazer até os dias atuais um pouco desse universo particular que ilustra de maneira sublime a criação das Escolas de samba, a malandragem do Rio de Janeiro nos anos trinta, o cenário da Música popular brasileira em fase pioneira e as questões da conciência negra. Boa leitura!
Ismael por Ismael:"...Eu nasci em 1905, em Jurujuba, Niterói. Aos três anos vim para o Estácio, com minha mãe. O Estácio fazia parte da Pequena África Carioca, que se estendia da Saúde, Gamboa à Praça Onze, da Praça Onze ao Estácio, Catumbi. Era um reduto de costumes africanos trazidos da Bahia, quando nós imigramos para cá. Convivi com essa cultura. Cultivei e fui cultivado por ela. Sou sambista. Um dos bambas do Estácio..."
Negritude:"...Sou negro e como negro devo achar meu caminho na vida. A libertação muito recente não modificou em nada nossa situação. Somos postos de lado nas escolas, nos serviços. A identidade que nos envolve é penosa e devemos lutar para preservá-la...Então, os negros se empregavam no cais do porto. Toda aquela zona era o nosso domínio. Não, o trabalho não nos integrou à sociedade, não. O contato acabou por se fazer naturalmente; embora marginalizados, participávamos da vida social – minha mãe mesmo lavava roupa para o Flamengo, as Laranjeiras e acho que São Cristóvão. Estávamos nas ruas, não é? O trabalho não nos dá nada, nem dinheiro, nem reconhecimento social. Havia era a precisão de ganhar a vida, o sustento, e isso fez com que buscássemos alternativas. O cais dava emprego, mas não para todos. A música poderia ser uma saída. Nós fazíamos música e havia o mercado fonográfico... os discos... e uma necessidade de furar o bloqueio social. O negro é muito mal visto. Branco é quem compra disco..."
As "tias" pioneiras.
Nesse cotexto, uma mulher assumiu notoriedade pelo respeito e credibilidade que impunha sobre aquele universo. O nome de Tia Ciata esta cravado na memória do samba e sua importância é apontada por uma serie de teses, livros e artigos que não economizam elogios a sua relevância enquanto liderança natural. Batizada Hilária Batista de Almeida nasceu em Salvador em 1854 e aos 22 anos veio para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor. Foi a mais famosa das tias baianas e era na comida e nas vestes tradicionais que expressava suas convicções religiosas, sua fé no candomblé e sua posição de “mestra ancestral” da tradição.
Em sua casa - considerada a Capital da Pequena África – que tinha como freqüentadores gente como Pixinguinha, Donga, Heitor dos Prazeres, João da Baiana, Sinhô e Mauro de Almeida, que o samba ganhou abrigo seguro, para dali nascer o primeiro levado ao disco em 1917, inaugurando a consolidação do encontro “para tocar samba” como um gênero musical propriamente dito.
Com o tempo, o samba ganhou escola e em 1935, o termo “escolas de samba” foi legalizado ao passo em que o desfile de rua foi oficializado. Na época não existia nem percurso, nem horário certo, mas era indispensável à passagem desses grupos na Praça Onze, para que as Tias Baianas - consideradas as mães do samba e do carnaval dos pobres - fossem saudades e distribuíssem sua benção demonstrando assim, a importância daquele grupo de mulheres para aquele universo.
Seguindo a linha evolutiva dessas mulheres, esse espírito de liderança espalhou-se por todas as comunidades onde as sementes do samba foram lançadas. Com o tempo, a imagem das “tias” se reformulou para tornar-se popular a figura das “Tias do Samba” como conhecemos na atualidade, sendo essas talvez, a mais definitiva representação da importância e contribuição da mulher nesse universo. Guardiões do espírito das “Ciatas”, rodando como baianas, atuando na organização ativa das agremiações, perfumando as quadras com o perfume de seus quitutes, ou com o reconhecimento e gratidão resguardado na Velha-Guarda, muitas conquistaram prestígios que ultrapassaram as fronteiras de suas comunidades.
Tia Neuma - seguindo a tradição
Baluarte da Estação Primeira de Mangueira e filha de um se seus fundadores, D. Neuma tornou-se Tia para as crianças quando, além das suas 3 filhas de sangue, adotou 27 crianças do morro oferecendo assistência desde a alimentação até a educação. A casa, sempre de portas abertas, retratava o espírito acolhedor de D. Neuma que procurava ajudar à comunidade da melhor forma possível. Referência no morro, a humilde residência era o lugar aonde chegavam as encomendas dos moradores - desde correspondências à material de construção - além do telefone que apesar de não ser o único do local, era o que todos podiam usar.
Nessa constante preocupação com o bem-estar da sua comunidade, essa mulher que enquanto assistia as crianças jogando futebol na rua - e enxergava as conseqüências dessa simples brincadeira através do número de atropelamentos - junto com Agrinaldo de Santana teve a idéia de que fizessem dentro da quadra um espaço para que as crianças pudessem brincar com segurança e, a partir dai, com a existência de um sistema próprio de alfabetização que a mesma havia implantado junto a comunidade, viu seu sonho crescer quando a idéia por ela concebida ganhou forma com a inauguração do CAMP MANGUEIRA. Assim como Tia Ciata, que tem seu nome em uma Escola Municipal na Avenida Presidente Vargas, em abril de 2008, o Estado inaugurou em memória e reconhecimento o Anexo I da Escola de Ensino Fundamental Tia Neuma, na Vila Olímpica da Escola.
Tia Doca - tradição do "pagode" renovada.
Ainda nesse universo de ativa participação na luta e na conquista da preservação da memória e do reconhecimento das classes minoritárias Tia Doca, Pastora da Azul e Branca de Madureira tornou-se uma guerrilheira em prol da tradição do pagode ( entendendo-se pagode como um encontro de sambistas para a prática musical ). Antes de ingressar na Portela, Doca tomou as primeiras lições de samba no Prazer da Serrinha. Aos 14 anos assumiu o posto de porta- bandeira da Escola Unidos do Congonha. Sua estréia pela escola na qual se tornaria mais tarde um de seus ícones, foi em 1953 através de seu marido Altair, filho de Alvarenga, grande compositor portelense. Tia Doca intituláva-se defensora do samba de raiz e em virtude disso seu quintal molhado para não levantar poeira, reunia sambistas consagrados e “curiosos” que mais tarde conheceriam estrelato como Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz. Quando casada, o quintal de sua casa servia de palco para os ensaios da Velha Guarda Show da Portela, com a separação, o que antes era feito para reunir amigos, passou a ser a fonte de renda de Doca no sustento de seus filhos e daí deu-se início a uma das mais tradicionais rodas de samba da Cidade, o Pagode da Tia Doca, que tornou-se uma das mais belas páginas da história do samba na cidade do Rio de Janeiro. Nesse território livre para criação e descobertas, mantido por seus filhos mesmo após o falecimento da pastora, destacava-se outra extraordinária habilidade que reforçava sua tradição ancestral: Excelente cozinheira, em suas rodas de samba Doca demonstrava sua habilidade nos quitutes sendo a sopa de ervilha apontada por Zeca Pagodinho como uma de suas comidas preferidas preparadas pela pastora portelense.
De frente na roda que leva seu nome.
Não há quem possa entender a história das escolas de samba sem passar por um nome de mulher. Muitas transformaram suas histórias particulares na história do próprio samba. São baianas, como foi Tia Vicentina na Portela - que a pedido de seu irmão Natal assumiu o comando da cozinha do Portelão ganhando uma homenagem do compositor Paulinho da Viola que imortalizou "o famoso feijão da Vicentina" ao acrescentar-lhe o titulo de “coisa divina” - ou D. Ivone Lara – a grande dama do samba que entrou para a história como compositora renomada da MPB e primeira mulher a ingressar na Ala de Compositores de uma escola de samba.
D. Ivone Lara - a grande dama do samba.
São Porta-bandeiras como foi Tia Dodô - que aos 15 anos recebeu das mãos de Paulo da Portela o pavilhão da escola e dentro de sua história singular no mundo do samba chegou ao inusitado cargo de madrinha da bateria mesmo quando já passava dos 80 anos – ou Maria Helena; - a grande-porta bandeira da Imperatriz Leopoldinense que com sua garra, determinação e seu jeito “forte” de dançar defendeu as cores de seu pavilhão até o carnaval de 2006 – chegando ao nome de Selminha Sorriso - ícone da escola de Nilópolis, soberana no ofício que exerce, e referência para todas as Portas-bandeiras.
Selminha Sorriso - Talento e graça.
Além do que já disse, as mulheres realizaram uma escalada ascendente na ocupação de setores até então predominantemente masculinos. Hoje, encontram-se presentes em todas as baterias de Rio de Janeiro. Em algumas escolas são diretoras de naipes como tamborim e chocalho, mostrando que não há barreira nem limitação para sua área de atuação. Até a Estação Primeira de Mangueira – que mantinha a proibição por estatuto - inseriu mulheres entre os seus ritmistas quebrando um tabu mitológico em tono da questão da presença feminina em sua bateria. Como pioneira nessa empreitada, Dagmar - esposa de Nozinho, irmão de Natal - a primeira mulher à tocar surdo numa escola de samba.
Ainda faltam alguns setores à serem ocupados por nós mulheres. Ainda não conseguimos com que uma mulher esteja à frente de uma bateria não pela beleza, mas no posto de Mestre de Bateria. Ainda falta uma Diretora de Carnaval, ou, uma Diretora de Harmonia que tenha o mesmo reconhecimento dos homens que exercem estas funções. Hoje, mesmo que tenhamos importância reconhecida e algumas já tenham deixado a marca feminina na direção de agremiações como Dona Neide - que foi Presidente do Império Serrano - Chininha - filha mais velha de D. Neuma - que até o carnaval de 2009 foi Presidente da Mangueira e Regina Duran - atual Presidente do Salgueiro – o papel da mulher para o samba, sua contribuição e presença, ainda terá de ser estudado e revista para que seus nomes não caiam no esquecimento!
Abaixo, algumas das muitas que emprestaram ou emprestam sua graça, força e beleza ao samba! De todas as idades, cores e nomes. De tempos distintos. Próximas ou distantes! Salve sua beleza! Salve seus nomes!
Carmem Miranda
Tia Surica
Beth Carvalho
Tia Dôdô
Clara Nunes
Maria Helena
Bibliografia: Site academia do samba; site wikipédia, Acervo CAMP da Mangueira, jornal extra on line; livro batuque na cozinha de Alexandre Medeiros, site gres portela, site da liesa
O LP de Martinho da Vila onde o sambista dedicou reportório a sambas antológicos
Porém, é preciso saudar essa iniciativa que a meu ver demonstra uma alternativa muito positiva para reaquecer o interesse pelo samba feito para desfile. Devolver ao sambista a possibilidade de executar “seu samba” tal como ele é, é um grande passo para o reconhecimento da dedicação com o qual homens e mulheres se entregam a uma causa que não lhes rende retorno financeiro algum.
Nos anos 90, algumas gravações foram feitas ao vivo, sob a lona do Circo Voador. Além do que já fiz correr, gostaria de acrescentar um fato muito curioso e pertinente no universo dos discos de samba-enredo: Quarenta e dois anos estão entre a folia de 1968 e o de 2010, mas o fato de seus carnavais apresentarem discos gravados ao vivo os deixa muito próximos.
A capa do primeiro disco lançado em 1968.
Em 1967, pela primeira vez, foi lançado um disco com os sambas que as Escolas apresentariam no carnaval que se aproximava. Intitulado de “Festival do Samba – Gravado ao vivo”, o “bolachão” trazia as baterias das mais tradicionais agremiações cariocas executando entre cuícas, pastoras, surdos dolentes e tamborins vagarosos, os sambas-enredos do Salgueiro, Mocidade Independente,Império Serrano,Portela, Mangueira, Unidos de Vila Isabel e Unidos de Lucas.
Pela primeira vez, o publico passou a conhecer os sambas que seriam executados no carnaval com antecedência, proporcionando um “boom” comercial que gerou finanças grandiosas de forma que desde então, não há carnaval desacompanhado de disco.
É certo, como já citei, que o interesse pelo “disco dos sambas enredos” muito se perdeu. A vendagem não chega perto do tempo em que o LP era esperado para rodar nas vitrolas que animavam as festas familiares e o fim de cada ano. Muita coisa ocorreu entre o carnaval de 1968 e o que esta para chegar. Entre o primeiro LP e o CD para 2010, estão muitas décadas de transformações que mudaram o carnaval e a historia do samba.
Quando o disco de 2010 estiver em nossas mãos, mas do que o registro ao vivo das baterias de nossas agremiações, estará nele, o registro das transformações do carnaval e a tentativa de que o samba-enredo volte a tocar – pela mãos dos sambistas – o coração dos foliões.
Meu desfile de estréia: No mundo da lua em 1993.
Ao lado do meu avô Xango da Magueira.