







Passado os abraços iniciais, adentramos a sala onde me deparei com as inúmeras fotografias que se espalham pelas paredes na tentativa de manter sempre presente momentos importantes na vida pessoal e profissional desta grande mulher. Começamos a conversar, porém, o que ainda estava em questão era a “Avó” Vilma, que me falava com orgulho e carinho de seus netos, e da mais nova bisneta que nascerá a pouco. Estar ali, entre suas recordações, em seu seio familiar, na sala, ao lado dela e de seus netos, me comoveu. Pude sentir o amor, o carinho, o respeito e a admiração de todo aquele ambiente, que naquele momento, estava suspenso no tempo. A mesma atitude percebi dela, ao referir-se deles. Vê-la no papel de Avó me remeteu a infância, quando escutava as histórias contadas por meu avô e por minha mãe, e pude, mais uma vez, sentir a grata sensação de ouvir o passado pela figura de quem o construiu.
Abaixo, um trecho de memória viva! As palavras e as fotografias que seguem falam sobre o passado e o presente, muito melhor do que eu! Fica aqui minha singela homenagem a essa grande dama, cuja grandeza maior está em sua história.
Squel- Sua história corresponde à um período áureo da Escola de Madureira. Como era essa Portela que incomodava?
Vilma - Desde que eu comecei a sair, a Portela ganhou 7 anos seguidos!! Era muito bom! Ali era uma família! No natal e no ano novo, todos nós ceiávamos na Portela!
Squel – Me aponte um desfile marcante que a senhora tenha vivido na Portela...
Vilma - Pra mim marcou o ano em que o Natal morreu. Quer dizer, não foi o ano em que ele morreu. Ele morreu em 1971 e eu estava saindo de destaque. Dei um parada de 1969 até 1976 e nisso saia de destaque. Em 1976 a Danielle nasceu, e em 1977 voltei! Então em 1977 eu senti falta do Natal! Pra mim foi muito triste, porque ele desfilava perto de mim. Ele ia na frente mas voltava, perguntava se eu queria alguma coisa. Até sapato meu Natal carregou! Quando chuvia o sapato saia do pé (rs) e ele é quem levava...quando chegava perto do jurado ele me dava para que eu pudesse dançar. Ele dizia que quem tinha de ser filha dele era eu! Que eu era quem parecia com ele! (rs) Ele me amava!
Natal da Portela: personagem sempre presente.
Squel - Natal dizia que a Portela não desfilava sem a Vilma! Como era a relação entre vocês?
Vilma - A minha relação com ele era muito boa, é tanto que ele dizia que eu tinha que ter sido filha dele! Como porta-bandeira, ninguém podia falar nada de mim, senão ele brigava! Quando casei Mazinho disse: esse ano você não vai sair! Dai a gente escuta alguém bater na porta e eu disse: Isso é batida do
seu pai! - E ele: Papai aqui em casa? E foi abrir a porta. - E ai o Natal disse: Olha aqui! - E quando fui ver, tinha um maço de dinheiro - ele era quem me dava o dinheiro pra comprar o material e quem fazia a roupa era eu e minha família.
Minha prima largava a casa dela e ficava por 3 meses na minha casa com marido, filhos... tudo bordando. Até o marido dela bordava! Os meus sapatos era ele quem bordava todo ano. Todo mundo ia pra minha casa! Então Seu Natal dava só o dinheiro do material. - Ele chegou e disse: Aqui o dinheiro pro material! Vá comprar a fantasia! - E o Mazinho: Ah! Não! Papai essa não! Casamos agora! Esse ano não tem não, bota outra! (rs). - E Natal disse: Nem você manda nela, nem ela se manda! Quem manda aqui sou eu! (rs).- Ele era terrível (rs). Ai...eu adorei né!
Ao lado de Benicío: Período majestoso da história dos desfiles cariocas.
Squel - Em 1969, a senhora passou o posto para Irene. Porque?
Vilma - Eu não passei o posto pra ninguém! (risos). Sai em 1968 porque eles só pagavam o material. E o Natal foi preso na Ilha Grande. O carnavalesco que estava lá era o Clóvis Bornay. Eles queriam que eu me encontrasse com o Clóvis e fosse comprar material no meu nome. E por ocorrer alguns problemas com relação à essas compras, eu escrevi uma carta dizendo que era para eles pagarem a “Loja Silmer” primeiro, e depois comprava fiado para o carnaval. O presidente então resolveu me dispensar! E então ela foi apresentada. No carnaval de 1969 eu não sai! E em 1970 eu sai de destaque na Portela, onde fiquei saindo até 1976.
Squel - E como aconteceu a sua volta em 1977?
Vilma - Voltei a dançar em 1977 porque o Hiram Araújo me venceu pelo cansaço! O Hiram era diretor cultural da Portela. O enredo era dele e ele me pediu. E acabou me vencendo pelo cansaço. O Natal Ficou aborrecido porque ele queria que eu voltasse a dançar quando ele saiu da Ilha Grande. Mas o Carlihos disse que não, que já tinha a Irene. O Natal morreu aborrecido com ele!
E o carinhoso apelido de Cisne da Passarela, como surgiu?
Vilma - Ah! Isso foi coisa do Waldinar Ranufo jornalista! Quando ele me via dançar, dizia que minhas “perninhas” pareciam com as de um cisne (risos).
Squel - Sua passagem pela Avenida marcou de tal forma o carnaval carioca que a senhora tornou-se inspiração para famosa canção da MPB. Como a senhora vê esse reconhecimento?
Vilma - Isso pra mim é muito importante! É muito bom! Porque na época quem fez, há muitos anos atrás, foi o Jair Amorim. Ele nem era Portela, ele era Mangueira. Depois que ele passou a ser Portela por minha causa. Ele veio lá da terra dele para ver o carnaval aqui. E quando ele me viu dançar, ficou louco! Apartir dai, todo ano ele vinha fazer reportagens e me seguia. A mulher dele tinha uma raiva de mim! O que, que é isso! Aliás, as mulheres dos homens tinham raiva, agora não mais! (risos) Mas era porque os homens ficavam na avenida me olhando encantados. Só falavam de mim! Hoje em dia algumas até se tornaram minhas amigas. Quando escutei a música na rádio chorei, é muito bonita!
E depois a Leci Brandão...muito bonita a música da Leci também! Meu cunhado também fez música para mim quando eu voltei a dançar de porta-bandeira. Olha! Eu tenho música que dá pra fazer um cd! Agora é cd né? Então dá pra fazer!
Squel - Quando foi que a senhora resolveu que era hora de parar de dançar?
Vilma - Ah! Foi quando tiraram os pontos de porta-bandeira e mestre-sala! Se não vai julgar, o que eu vou ficar fazendo aqui? Eu quero ajudar a escola com os meus pontos! Eu brigo por isso! Eu não quero derrubar ninguém. Não quero ser mais do que outra porta-bandeira. Não é esse o meu ideal! O meu ideal é arrumar os pontos pra minha escola. Para minha escola ir mais à frente...não descer! Eu só pensava em não descer (risos). Era esse o meu problema, não descer! Então eu queria garantir os 40 pontos, sei lá! Tudo o que fosse possível. Não era para ser a melhor porta-bandeira da avenida não! Nunca tive essas coisas! Minha meta era outra! Era ajudar a minha escola! Saia da avenida sangrando, ai arrumei um jeito de “alcochoar” para não machucar. Não tinha talabarte na época. Talabarte quem inventou foi eu! Carregava a bandeira na cintura! Não tinha nada disso antigamente. A primeira pessoa quem fez pra mim o talabarte foi o Arnaldo das Faixas...expliquei à ele o que eu queria...
Squel– Após os anos em que a senhora desfilou na Portela, a senhora continuou na Avenida...
Vilma - Eu parei de desfilar na Portela, mas sai 2 anos em alas na Ilha e na Imperatriz. Saia no Cacique (risos). Nessas duas escolas eu saia em ala de passo marcado. E em 1982 sai na Ilha como homenagem à Portela. Em 1984 fundaram a Tradição, me chamaram e eu aderi à Tradição! Mas eu desfilava na frente da escola, eu vinha representando o Natal na Tradição. Em 1988 eu não queria, mas o Nésio pediu para que eu viesse como a primeira porta-bandeira. Avisei à ele que não seria por muito tempo. Eu não queria! Avisei à ele para ir arrumando outra. É que a Regininha não quis mais e ai eu assumi. Dancei até quando o Nésio decidiu colocar a Daniele.
Squel– Na Portela, ou distante dela, as transformações mais importantes da Escola ocorreram diante dos seus olhos, ou sobre as decisões de sua família. Conte-me um pouco sobre isso...
Vilma - Na época, a Portelinha já não dava mais pra escola, era pequeno. Ai o Mazinho falou para o Carlinhos Maracanã: Pô! Vamos comprar um outro terreno porque aqui não dá mais. E ai o Mazinho perguntou à ele que se caso ele achasse um terreno, se ele compraria. Ele disse que sim! E ai o Mazinho achou o Portelão e eles foram procurar o dono que morava ali perto! Mas nisso o Mazinho ficou tomando conta do Mourisco essas coisas todas – o Mourisco era um clube na zona sul carioca que abrigava os ensaios da Portela no período pré-carnavalesco. Ai sobrou um dinheiro do carnaval e o Mazinho disse: Tem tanto! - Porque tinha que dar uma entrada, mas só esse dinheiro não dava. Ai o Carlinhos emprestou uns 200 e poucos, e ai compraram o Portelão! Mas o Carlinhos ficou fugido e o Mazinho ficou tomando conta. Ficou atrasado uns 3 meses ou 4 meses a prestação do Portelão! Iamos perder o Portelão! Mas ai o Seu Natal veio aqui - eu já morava aqui. Seu Natal veio aqui e disse pro Mazinho que se perdesse o Portelão ele morria. - E Mazinho disse: Viu! Eu não queria assumir!? - E eu digo: Assume! - Mazinho teve que assumir com Carlinhos fugido. Mas o nome do Carlinhos não serviu pra "apanhar" o dinheiro emprestado e teve que usar o nome do Mazinho para conseguir o dinheiro! Nisso, essas minhas casas aqui foram Penhoradas! E ai o Mazinho tomando conta dessas coisas, começou a arrecadar o dinheiro para colocar em dia a dívida e quitar a compra do Portelão!
Squel - Por qual motivo ocorreu o desligamento dos integrantes da Portela, que ocasionou na criação da Tradição?
Vilma - Ah! Sei lá...eu não estava mais! Mas é que eles queria derrubar o presidente e ele os expulsou. Nisso ele acabou expulsando 12 alas e o Nésio, que fazia parte da diretoria da Portela.
Squel - O que representou para a Portela a fundação da Tradição?
Vilma - Acho que representou muito pouco para a Portela. A Tradição não tinha nada haver com a Portela. As pessoas vinham falando: Ah! É a filha da Portela! - Não! Não tinha nada haver com Portela. Portela era Portela e a Tradição era a Tradição! Só lamento o estado em que está hoje a Tradição. Porque nós colocamos ela no auge. Briguei muito pela Tradição. Até deitar no chão para que o trator não passasse, eu deitei! Fui parar no fórum por causa disso!
Squel - Para a senhora, qual dos desfiles em que esteve presente marcou?
Vilma - Emoção maior pra mim como porta-bandeira foi na União da Ilha.
Surpresa pergunto: A senhora desfilou na Ilha?
Vilma - Desfilei, mas não foi como porta-bandeira oficial. Saiu eu e o Benício! Nós saímos homenageando a Portela. Já não estava mais na Portela, isso foi em 1982. Eles fizeram aquele enredo – “Obrigada minha madrinha”...porque a Portela é madrinha deles, né. E então eles me convidaram! Mas a intenção deles era me botar como primeira. Mas eu não quis! Ai eu digo: Não! Não quero porque vocês tem a porta-bandeira de vocês. Não quero, não quero sair não! Ai o Roberto Maia que era o presidente, com uma semana pro desfile, juntamente com meu marido, me convenceram à desfilar como “homenagem à Portela”. Menina, o Evandro é quem fazia a minha roupa. Porque quando eu voltei à desfilar em 1977 eu disse: Não faço mais as minhas fantasias! E disse pro Nésio: Vocês levam a roupa da porta-bandeira de vocês com 1 mês antes pro carnaval prontinha! Então eu não vou me acabar mais! Vocês fazem, eu não quero saber de nada. Ai escolhi o Evandro que não queria fazer, alegando o seguinte: Eu não estou acostumado à fazer escola de samba, eu faço pro “Theatro Municipal”! E eu disse: Ah! Mas eu não quero saber, foi você que eu escolhi e eu quero você! - E ele: Eu não vou fazer! - E eu: estou indo para ai! Ai levei o figurino, quem era a carnavalesca de lá era a Rosa Magalhães com a Lícia Lacerda. Mas ai eu disse: Eu trouxe o figurino pra você ter uma noção! Mas esquece o figurino porque é horrível! Horroroso! Vou deixar por sua conta! (rs) - E ele: Pelo amor de Deus! E a Rosa? - E eu disse: Ela não vai falar nada. Não é ela quem vai dançar! Quem vai dançar sou eu! Ela não dança. Ela risca, faz enredo. Não meu filho! Quem vai dançar sou eu! - E ele: Ai meu Deus do céu! O que é que eu vou fazer? - Eu disse: É contigo mesmo! Quanto é? - Ele: Eu não vou te cobrar. Só uma coisa simbólica. Ai cobrou 500! 500 mil na moeda da época, que era muito dinheiro naquele tempo. Cheguei na escola e disse: Oh! É tanto! Paga ai! Mas paga agora! Ai o Nésio: Não! Vou dar o dinheiro à você e você mesma paga. Peguei o dinheiro e fui lá pagar. Então foi em 1977 o meu primeiro ano com o Evandro, aquela lá, aquela fantasia azul -nesse momento ela aponta para um dos quadros expostos em sua sala em que se encontra a foto dessa fantasia.
Mas voltando ao desfile da Ilha...peguei a roupa direitinho e fui para a avenida. Na avenida, eles não apresentaram a porta-bandeira como a primeira da Ilha. Não apresentaram nem no primeiro, nem no segundo jurado. Quem era o coordenador na época era o Antônio Lemos. O jurado mandou ele vir me pergutar se afinal de contas eu era a primeira porta-bandeira da Ilha (risos). Ele veio me perguntar e eu respondi: Não! Primeira é a outra! Eu só estou prestando uma homenagem!
Eu sai da Portela em 1979. E então achei que fosse ser vaiada, mas pensei: Seja o que Deus quiser! Quando cheguei na concentração da Ilha era tanta gente querendo o meu autógrafo. Eram tantos autógrafos, foram mais de 200! (risos). Todo mundo em cima de mim. E ai chegou a hora de desfilar, a bateria já ia entrar. Mas eu sempre levava uma garrafa de Whisky para a avenida como eu sempre fazia na Portela. E na Ilha não foi diferente! Eu tomei uma dose e entreguei a garrafa à bateria e disse “Vambora” bateria”! E eles adoraram! Eles começaram a dizer: Ih! A tia é legal! (risos). Quando coloquei o meu pé na avenida disse: Seja o que Deus quiser! Quando eu botava o pé na avenida, eu me transformava. Ninguém me conhecia! Os problemas ficam lá em casa. Eu não queria nem saber!
Ai, quando eu entrei na avenida e dei a minha corridinha. Porque eu dava uma corridinha. Menina! Eu só via aqueles lenços brancos acenando pra mim e gritando Vilma! Vilma! Vilma! Chorei muito! Eu nunca tinha passado por aquilo, nem na Portela! E eu ia passando pelas cabines e as pessoas chorando. Nisso encontrei Ligia Santos no meio da Avenida que chorava e falava: Pelo amor de Deus!
E ai veio o meu marido me perguntar se eu estava passando mal! E vinham as pessoas com água, e eu não querendo nada. Fui dançando, dançando...foi muito bom! Nem na Portela vivi isso! Em ter reconhecimento dessa forma do público. Eu não posso falar que não tinha o carinho do público na Portela, eu tinha! Mas nunca foi dessa forma como foi na Ilha!
Squel – A pouco, a senhora falou sobre a confecção de suas roupas através no nome de um dos seus costureiros. Como a senhora vê a importância de uma boa roupa?
Quando eu passei a fazer roupa com o Antônio ( Antônio Esperandini ), eu nem me preocupava. Eu só ia lá tirar a medida, depois provava e só ia buscar. Ele me ligava e dizia: Pode vir apanhar aqui sua chata! E eu dizia: Ué! Eu sou chata? E ele respondia: Você não, você é a minha neguinha! Ele dizia que eu era herança do Evandro. Porque ele trabalhava com o Evandro, e quando ele morreu o Antônio assumiu tudo!
Squel - A senhora dançou nos anos 50, 60, 70, 80 e 90. Como vê, através das mudanças nos figurinos, as transformações pelas quais o carnaval passou?
Vilma - Foi boa!...Tirando por aquela sua roupa verde com preta. ( Nesse momento ela relembra minha fantasia do carnaval de 2008 ). Quando eu vi aquela fantasia, eu fiquei doida! Eu dizia: A coisa mais linda vem ai! Olha lá! Olha lá! Estou vendo daqui! E pra mim foram duas fantasias que eu gostei: Que foi a sua, que estava linda! Uma coisa, meu Deus do Céu! Não tem explicação! ... E uma fantasia que a Babi usou quando saiu na Mocidade, em que ela veio de esquimó. Quando eu vi a Babi com aquele gorro, era a coisa mais linda! Parecia uma neve! Era a coisa mais linda que eu vi!
Squel - E sua relação com os seus mestres-salas, como era?
Vilma - Dancei muitos anos com o Benício. Tive o Ari, ele é tio do Arlindinho e quem foi o meu primeiro mestre-sala na Portela. Dancei na União de Vaz Lobo com o Robertinho. Depois do Ari, veio o Benício que é meu primo, meu irmão! Minha mãe foi quem o criou. Olha, eu e o Ari já sabíamos o que fazer pelo olhar! (risos). A gente ria até das nossas desgraças! (risos). Quando nós errávamos também ríamos. Não brigávamos, não! Olha! O Delegado com a Neide, era um horror na avenida. Eles gritavam um com o outro, brigavam! Era um horror! E com o Benício era a mesma coisa, só pelo olhar já nos conhecíamos! Na Tradição dancei com o Paulo Roberto e com o Julinho.
Squel - Sabemos que muitas coisas mudaram da década de 50, quando a senhora começou a dançar, para os dias atuais. Sei que a dança sofreu alterações por ter acompanhado o ritmo das baterias que ficou "mais adiantado". Como a senhora avalia essas transformações?
Vilma - Mudou também por causa das escolas, o número de componentes é insuportável! Então não sobrou espaço pra porta-bandeira. Ai tiraram o casal da frente da bateria pra colocar rainha de bateria. Pra colocar essas musas que não sambam nada! Quer dizer...mudou tudo! Ai colocam o casal na frente da escola. O som chega atrasado, horrível! Eu sou contra isso, eles dizem que é porque não abrem buraco. E quantas vezes o casal tá lá na frente e abrem-se buracos na escola? O buraco abre quando não tem uma boa harmonia! Tendo uma boa harmonia não abre! Agora eles colocam um monte, um monte de gente, que compram roupa pela internet, que não sabem o samba, que não sabem de nada! Ah! Falo mesmo! Essas coisas pra mim não vale! Agora, não dá tempo pro casal dançar para o público. Antigamente tinha o momento do mestre-sala, tinha o momento da porta-bandeira e tinha o momento deles juntos! Era assim..agora não! E era função do mestre-sala ir em função da porta-bandeira. Agora não! Agora a porta-bandeira tem que ir em função do mestre-sala! Nunca vi isso! A porta-bandeira, com a bandeira e roupa pesada tem que ir atrás do mestre-sala! O mestre-sala roda mais que a porta-bandeira! Depois eles ficam falando mal de mim quando eu falo isso! Eles dizem que estou ultrapassada, que minha época já passou. O olha que tem o regulamento, ai depois leva "pau" dE jurado e quer reclamar! É ai que tá o problema! Dançar sem fantasia em quadra é uma coisa! Dançar com fantasia na avenida é outra coisa! Eu sempre digo que a gente tem que encarar: avenida, bandeira, fantasia e mestre-sala! Agora eu vejo muita coisa, mas quando eu falo dizem que estou ultrapassada! Ai eu dou gargalhadas quando vejo as notas deles! Depois eu vejo a justificativa também, eu vejo tudo!
Squel - A senhora teria alguma mensagem passar aos novos sambistas e para a atual e futura geração de portas-bandeiras?
Vilma - Não adiante falar nada. Porque tem uns que dizem que já estão preparados! Eles dizem: Eu já estou preparado para ser o primeiro! Eles fazem assim. E eu até parar de dançar dizia que não estava preparada. Que até na avenida a gente aprende! Porque todo o dia a gente aprende. E eles não! Eles dizem : Eu já estou preparado! Então é difícil! Se a gente fala alguma coisa eles dizem que estamos ultrapassados! A única coisa que eu costumo dizer é que o casal tem que gostar daquilo que está fazendo! Agora eu sei que mudou. Tá certo mudar mesmo. Porque tem um dinheiro e têm que ter! Porque agora as escolas exigem que façam vestidos e se exigem, tem que dar! Mudou o modo de receber as pessoas. O que eu vejo é isso, as pessoas, os casais, tem que gostar daquilo que faz! Tem que ter o dinheiro que é para se vestir bem nas quadras, nas apresentações, lógico! Ter uma fantasia bem bonita, porque no fundo isso é julgado! Porque depois que visual virou quesito, acabou-se! Eu acho isso, que o casal tem que gostar do que faz! Tem que batalhar pelos pontos pra sua escola. Porque é tão bom para a escola quanto para o casal. Também acho que não se deveria marcar tanto passo assim! Pode se criar mais coisas individuais!!!
Mas que tradição é essa a qual me refiro? A tradição de tudo. A tradição dos costumes, da herança ancestral, do jeito de fazer e desfazer a história. Sua casa é um museu. Mas não o museu que ela mesmo construiu para manter sua história pessoal. Lá, no alto do Morro da Providência, na casa que desce por escada abaixo, está preservado um pedaço vivo de história que não está em fotografias, objetos, ou no que se possa tocar ou guardar.
Assim como está lá a história da cidade, não a cidade recente, que corre sobre o asfalto, mas a cidade de São Sebastião. A cidade que subiu o morro, a que inventou o samba, a malandragem, a que desceu para desfilar. A cidade que se expandiu pela linha férrea, que fez o samba ganhar Escola. Além da cidade, está lá toda a negritude. A negritude que venceu, que ganhou respeito. Assim como a religiosidade, o místico, as antigas imagens sacras e o amor guardado em fotografias, objetos, águias e tecidos azuis a tudo aquilo que ela julgou importante e empenhou-se a preservar.
Os noventa anos de Dôdô, mais do que o completar de nove décadas de saúde e vitalidade, foi o avanço da tradição viva e preservada sobre um tempo muito prolongado. Está em seu corpo, está no seu olhar, nos longos braços e na voz, a história recente da cultura desta cidade. Nela está o negro, o operário, a história de luta, está o samba, não somente o da Portela - tão presente nos azuis e nas muitas águias estáticas que sempre nos lembra que estamos numa casa portelense - mas o samba que serviu de alívio para as lágrimas das desigualdades, que serviu de escape para a tristeza cotidiana do pobre e do negro na cidade que ela viu transformar-se.